Está na hora de levar uma palmada
Hoje decidi escrever a propósito do conceitode "palmada na hora certa".
Eu aqui há dias pedi a uma funcionária para limpar um canto de uma sala que estava suja de comida. Ela ou se distraiu ou ignorou o meu pedido e não o fez logo. Voltei a pedir enquanto ela estava a fazer outra coisa e ela respondeu-me torto, o que eu não gostei. Comecei a chamá-la a atenção sobre isso e ela gritou-me! Dei-lhe uma palmada! Foi uma palmada na hora certa porque ela já estava a passar dos limites e assim aprendeu que não pode falar assim comigo!
O que acham deste episodio?
Obviamente vão achar absurdo e uma comparação estúpida. Mas... Será assim tão descabida? Porque devemos considerar os nossos filhos menos do que um adulto? Merecem menos o nosso respeito e tolerância?
Merecem mais violência do que um adulto?
Como ensinar que não se bate, batendo?
Porque parece tão errada a situação se for entre adultos mas a aceitamos quando se trata de crianças?
Porque é que se considera tão legítimo poder processar alguém por injúrias, agressão verbal, abuso de poder, violência física e psicológica, mas quando se trata de crianças passa a ser aceitável?
É porque é só um bocadinho e os filhos são nossos?
Aceitamos então que se agrida só um bocadinho a minha empregada preguiçosa porque ela é minha contratada e sou eu que lhe pago o ordenado?
Não... Continuamos a achar absurdo e até completamente ultrapassado. Mas se não está ultrapassado que as crianças merecem o mesmo respeito que um adulto, essa é uma mentalidade que tem de mudar!
Normalmente este é um assunto bem sensível que quando é trazido à baila suscita muita indignação de ambas as partes. E por norma há sempre alguém que se justifica a favor da palmada dizendo que levou muitas na infância e que não lhe fizeram mal algum. Ora essa é logo uma das consequências de educar através da violência: ela é validada perante quem foi sujeito a ela e normalmente é perpetuada junto da geração seguinte. Eu diria até que isto é uma espécie de síndrome de Estocolmo, pois acabo por me aperceber que quem defende a palmada com unhas e dentes é precisamente quem com ela cresceu.
E porque é que invariavelmente este se torna um assunto que parece afectar tanto quem concorda com a "palmada na hora certa"?
Será porque essas pessoas querem realmente defender que acham muito bem dar uma palmada aos seus filhos ou porque quando o tenham feito (ou alguém o tenha feito consigo) achou que tinha de haver uma justificação para isso estar correto embora sentisses o contrário dentro de si?
É que infelizmente o recurso às palmadas em crianças tem efetivamente esse efeito: elas crescem a saber que não gostaram mas que como foram as pessoas que elas amam a fazê-lo é porque existe um motivo válido para tal. E assim se perpetua a ideia de que a palmada é algo aceitável quando não deve ser.
Estando na área da educação conheço de perto a complexidade do desenvolvimento do cérebro de uma criança, por isso asseguro-vos que é impossível fazer a entender uma criança de que não deve bater se a mãe ou outro adulto que lhe seja significativo a seguir faz exatamente o mesmo ou já ou fez noutra ocasião.
As crianças aprendem por modelo logo, estar a ensinar o que ela deve fazer com o que ela não deve fazer apenas suscita confusão e contradição. Estarmos a assumir uma atitude de descontrolo quando queremos ensinar a criança que tem de se controlar é dizer "faz o que eu digo, não faças o que eu faço".
Além disso, quando se trata de crianças mais pequenas (até aos 4 ou 5 anos) falamos de indivíduos cujo cérebro está em grande parte controlado pelas funções mais primitivas e que quando entra em stress responde pelo impulso de luta ou fuga, algo que só a maturidade lhe irá permitir controlar mais tarde. Portanto cabe ao adulto compreender o motivo que leva a essas atitudes, manter a calma e mediar a situação, mostrando qual e a forma correta de agir quando nos sentimos descontrolados, zangados, contrariados.
É isto que é necessário sublinhar: a palmada não tem qualquer função de aprendizagem. E mesmo que "uma palmada bem dada" não venha a ser motivo dos problemas psicossociais mais graves (será que não?) verdade é que a sua ausência também não será motivo desses problemas. Obviamente que a não aplicação de uma palmada não é de todo indicação de ausência de outras ações, pois o que defendo está longe de ser educação permissiva. Mas há técnicas que podem ser adoptadas como a consequência direta, o diálogo, a partilha de emoções... essas sim muito mais úteis e que levam à aprendizagem e ao crescimento cognitivo.
Se uma criança está a fazer uma birra descomunal ou a fazer algo que o adulto não quer quer ela faça e leva uma palmada, ela possivelmente interrompe o comportamento, mas não porque compreendeu o motivo pelo qual o fez, pois apenas agiu por medo da palmada. Agora interrompendo o comportamento desviando o foco e até mostrando que se está aborrecido pelo comportamento e explicar que naquele momento não se quer interagir com a criança por estar a sentir-se zangado, a criança vai aprender que num momento de possível descontrolo, pode recorrer aos mesmos instrumentos para se manifestar. Já vi acontecer muitas vezes crianças pequenas com quem agem deste modo, conseguirem perfeitamente explicar o que estão a sentir em momentos de frustração, permitindo ao adulto agir em conformidade. E puff! Problema resolvido sem palmadas nem mais chatices.
Que isto é muito bonito falado e que na prática é um milhão de vezes mais dificil?! Claro que é!!!! Mas vale tanto mas tanto a pena!!!
Agora se quiserem dizer que há pessoas que com o stress do dia a dia não se conseguem controlar e acabam por ter uma explosão e mandar uma palmada a uma criança? E que é isso que consideram ser aceitável no sentido de compreender a dificuldade de até um adulto ter auto-controlo? Aí já estamos a falar de algo completamente diferente e que em nada tem a ver com o ver a palmada como algo aceitável, mas sim aceitar o impulso do adulto como algo difícil de controlar. Porém se veicularmos em sociedade a aceitação dessa dificuldade num sentido de empatia junto do outro ficamos todos mais perto de conseguir numa próxima ocasião mediar aquilo que levou ao descontrolo. E enquanto o sentimento social for de aceitação da palmada essa reflexão vai ficar muito mais complicada de acontecer.
Esta é uma discussão que tem pano para mangas mas que gosto sempre de expor porque muitas pessoas realmente aceitam algo com que viveram sem nunca sequer se tenham questionado se realmente foi isso que contribuiu para a sua educação ou não. E tomar consciência disso permite realmente que possamos criar relações muito mais ricas junto dos nossos filhos.
Aconselho profundamente leituras do pediatra Carlos González e o blog Parentalidade com Apego da Dra Laura Sanches, que oferecem perspetivas absolutamente ricas e deliciosas acerca deste assunto ao mesmo tempo que explica como realmente é prejudicial o recurso as palmadas e gritos na educação - tudo através de uma contextualização científica que permite compreender o porquê de cada comportamento ao longo do desenvolvimento cognitivo.
Eu não sou uma mãe perfeita, longe bem longe de mim o ser. Mas se há algo que aprendi nos últimos anos é que cada erro que cometemos é uma oportunidade de aprendermos e crescermos enquanto pais e humanos. E só temos a ganhar com isso!